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Alergia em Cães: Como identificar a causa (alimentar, atópica, etc.)

Alergia em Cães: Como identificar a causa (alimentar, atópica, etc.)

Alergia em Cães: Como identificar a causa (alimentar, atópica, etc.)

🔬 O Quebra-Cabeça da Coceira: Identificando as Causas de Alergia em Cães

E aí, turma da Dermatologia! Se você está na clínica de pequenos animais, sabe que a alergia em cães é o nosso pão de cada dia, e frequentemente, o nosso maior desafio. Eu costumo dizer que a pele do cão é um sistema de alarme supersensível. Quando esse alarme dispara (a famosa coceira ou prurido), ele pode estar avisando sobre uma pulga, um ingrediente na ração, ou até o pólen que flutua no ar.

O problema é que as manifestações clínicas são muito semelhantes: o cão se coça, se lambe, fica com a pele vermelha (eritema), e perde pelo. A chave para o sucesso no tratamento não é simplesmente dar um antialérgico, mas sim ser um detetive dermatológico, seguindo um protocolo de exclusão rigoroso para identificar a causa primária. Tratar o sintoma sem resolver a causa raiz é como apertar o botão “soneca” do alarme de incêndio. O fogo (a inflamação) voltará.

Nossa meta aqui é entender o trio principal das alergias (Pulga, Alimentar e Atópica) e as outras causas que as imitam. Você precisa aprender a diferenciar esses quadros com base no histórico, na localização da coceira e nos testes de exclusão. É assim que você sai da adivinhação e entra na medicina baseada em evidências.


🦟 Parasitas e o Ataque Sazonal: O Rastreio Inicial

A primeira regra no diagnóstico de alergia é: descarte parasitas e infecções antes de pensar em alergia alimentar ou atopia. É um erro clássico e custoso começar uma dieta de eliminação ou um tratamento imunomodulador sem ter certeza de que o paciente está livre de pulgas e sarna.

1. DAPE: A Hipersensibilidade à Saliva de Pulga

A Dermatite Alérgica à Picada de Ectoparasitas (DAPE), ou alergia à pulga, é uma reação de hipersensibilidade à saliva injetada durante o repasto sanguíneo da pulga. É o tipo de alergia mais fácil de resolver, mas frequentemente subdiagnosticada porque o tutor jura que “não tem pulga”.

O cão com DAPE não precisa estar infestado. Uma ou duas pulgas podem desencadear a crise alérgica, que é caracterizada por um prurido intenso na região posterior do corpo: base da cauda, região lombar, face interna das coxas e virilha. No exame físico, você pode encontrar os chamados “excrementos de pulga” (pequenos pontos pretos que, ao serem umedecidos, deixam um rastro avermelhado, indicando sangue digerido).

A sua primeira intervenção é um tratamento acaricida agressivo no cão (com Isoxazolinas orais, por exemplo) e o controle ambiental. Se os sintomas de pele resolverem com o controle rigoroso da pulga (geralmente em 3 a 4 semanas), o diagnóstico de DAPE está confirmado. A DAPE é o diagnóstico que você precisa excluir primeiro em qualquer paciente com coceira.

2. Sarna Sarcóptica: O Grande Simulador

Embora seja uma infestação e não uma alergia per se, a Sarna Sarcóptica (Sarcoptes scabiei) é uma das principais causas de coceira intensa em cães e é um dos grandes simuladores de alergia.

O ácaro Sarcoptes causa uma reação alérgica intensa por conta da escavação na pele e dos seus resíduos. O prurido é desproporcional às lesões visíveis e pode ser confundido com a atopia. A coceira é tipicamente intensa nas margens das orelhas, cotovelos e jarretes.

Se você tem um paciente com prurido agudo, intenso e com histórico de exposição (parques, rua, contato com cães desconhecidos), e o controle antipulgas não resolveu, você deve proceder com o raspado de pele para sarna. Devido à dificuldade de encontrar o ácaro Sarcoptes, muitas vezes o clínico institui o teste terapêutico (tratar o cão com acaricidas de alta eficácia) para excluir a sarna antes de avançar para as alergias mais complexas.


🍽️ Alergia Alimentar: A Exclusão é a Regra de Ouro

Uma vez que você eliminou as causas parasitárias, o próximo passo na sua jornada diagnóstica é avaliar se a dieta do cão é a culpada.

3. Alergia Alimentar: Proteínas Invasoras

A Alergia Alimentar (ou Hipersensibilidade Alimentar) é uma reação imunológica (mediada por IgE e outras células) a uma proteína na dieta, que o corpo do cão identifica erroneamente como uma ameaça. Os alérgenos mais comuns são proteínas que o cão come com mais frequência, como carne bovina, frango, laticínios e trigo.

Os sintomas são o prurido não sazonal (constante o ano todo), que pode ser acompanhado de sinais gastrointestinais (vômito, diarreia, flatulência). A localização da coceira tende a ser mais frequente na face, orelhas, patas e região perianal. É crucial notar que a alergia alimentar pode se desenvolver mesmo a um alimento que o cão come há anos, pois o corpo precisa de tempo e exposição repetida para desenvolver a reação.

O diagnóstico da alergia alimentar é o mais desafiador e exige a colaboração total do tutor: o Teste de Eliminação Dietética. Isso envolve alimentar o cão exclusivamente com uma proteína nova (que ele nunca comeu, como pato ou coelho) ou com uma dieta hidrolisada (onde as proteínas foram quebradas em pedaços tão pequenos que o sistema imune não as reconhece como alérgenos) por 8 a 12 semanas. Se a coceira sumir ou diminuir drasticamente, a alergia alimentar é provável. A prova definitiva é a reintrodução do alimento antigo: se os sintomas voltarem, o diagnóstico é fechado.

4. Intolerância Alimentar: A Confusão Digestiva

A Intolerância Alimentar é frequentemente confundida com a Alergia Alimentar, mas não tem envolvimento imunológico. É uma reação adversa não imunomediada, como a intolerância à lactose em humanos (falta da enzima lactase).

Os sintomas da intolerância são primariamente gastrointestinais (vômito, diarreia, gases), e o prurido cutâneo é menos comum ou inexistente. É importante diferenciar porque o manejo é diferente: a intolerância é resolvida simplesmente removendo o ingrediente da dieta, enquanto a alergia exige a dieta de eliminação/hidrolisada. O seu foco, na clínica dermatológica, é na alergia, mas você deve sempre considerar a intolerância se os sinais digestivos forem proeminentes.


🍃 Alergias Ambientais: O Desafio da Atopia

Se você eliminou parasitas e alergia alimentar, o seu diagnóstico mais provável é a Dermatite Atópica Canina (DAC), a alergia aos alérgenos que flutuam no ambiente.

5. Dermatite Atópica Canina (DAC): O Fator Genético

A DAC é uma doença inflamatória e pruriginosa crônica com forte predisposição genética. O cão atópico nasce com uma barreira cutânea deficiente e um sistema imune que reage de forma exagerada a alérgenos ambientais comuns, como ácaros da poeira, pólen, fungos e grama.

O prurido da DAC é tipicamente sazonal no início (piorando em certas épocas do ano, como primavera/verão, devido ao pólen) e se torna perene com a cronicidade. A coceira se concentra nas patas (lambedura excessiva, inflamação interdigital), axilas, virilhas e, especialmente, nas orelhas (otite externa recorrente). É aqui que o cão desenvolve as famosas lesões secundárias: hiperpigmentação, liquenificação (espessamento da pele) e infecções oportunistas por bactérias e Malassezia.

O diagnóstico da DAC é, por definição, um diagnóstico de exclusão (eliminamos pulgas e comida). Uma vez que a DAC é confirmada, você pode usar testes intradérmicos ou testes sorológicos de IgE para identificar os alérgenos específicos, o que é útil para a formulação da Imunoterapia Alérgeno Específica (o tratamento de dessensibilização).

6. Dermatite de Contato: A Reação Localizada

A Dermatite de Contato é uma reação de hipersensibilidade (alérgica ou irritante) que ocorre por contato direto da pele com uma substância.

Os alérgenos típicos de contato incluem produtos de limpeza, shampoos, corantes em tecidos, plásticos (em tigelas) ou plantas. A lesão é estritamente localizada na área de contato. Por exemplo, se a alergia é a um produto de limpeza no chão, a lesão se manifestará nas patas e no abdômen. Se for à coleira, será no pescoço.

O diagnóstico é feito pela história (o cão esteve em contato com algo novo?) e pela localização das lesões. A prova é a remoção do item suspeito por algumas semanas. Se a lesão curar e voltar com a reintrodução, o diagnóstico de contato é fechado. É uma causa que você precisa excluir antes de mergulhar na complexidade da atopia.


🦠 Complicações e Similares: Os Oportunistas Ocultos

No cão alérgico, o sistema imune da pele está comprometido. Isso permite que organismos oportunistas, que já vivem na pele, causem infecções secundárias graves.

7. Infecções Oportunistas (Piodermite e Malasseziose)

Piodermite (bactérias) e Malasseziose (leveduras) são quase sempre consequências da coceira e da inflamação causada pelas alergias primárias (DAPE, DAC, Alimentar).

A Piodermite (infecção por Staphylococcus pseudintermedius) se manifesta com pústulas, crostas e vermelhidão.

A Malasseziose (Malassezia pachydermatis) causa odor forte, pele oleosa, espessamento (liquenificação) e escurecimento (hiperpigmentação).

O seu desafio aqui é duplo: tratar a infecção secundária com antibióticos e antifúngicos (guiado por citologia e, se necessário, cultura) e, simultaneamente, instituir o tratamento para a alergia primária (DAC, Alimentar). Se você só tratar a infecção, ela voltará assim que o medicamento terminar, pois a causa raiz (a coceira alérgica que quebrou a barreira) não foi resolvida.


🛠️ O Protocolo de Exclusão e a Escolha de Produtos

O seu sucesso no diagnóstico de alergia reside em seguir o Protocolo de Exclusão. Não se trata de um teste único, mas de uma sequência de passos:

  1. Excluir Ectoparasitas (Pulgas e Sarna): Tratamento rigoroso de DAPE/Sarna por 4 a 6 semanas. Se não resolver, avance.
  2. Excluir Alergia Alimentar: Iniciar a Dieta de Eliminação por 8 a 12 semanas (proteína nova ou hidrolisada). Se resolver, a alergia alimentar é confirmada. Se não resolver, avance.
  3. Diagnóstico por Exclusão: Se parasitas e alergia alimentar foram excluídos, o diagnóstico é Dermatite Atópica Canina (DAC).

É nesse ponto que você pode instituir o tratamento de longo prazo, que pode envolver imunomoduladores.


📊 Quadro Comparativo de Imunomoduladores para DAC

Uma vez diagnosticada a DAC, o manejo da coceira crônica se torna um compromisso de longo prazo, muitas vezes utilizando medicamentos que modulam a resposta imune do cão.

CaracterísticaOclacitinib (Ex: Apoquel)Ciclosporina (Ex: Atopica)Anticorpo Monoclonal (Ex: Cytopoint)
Mecanismo de AçãoInibidor de Janus Kinase (JAK). Bloqueia as vias de sinalização da coceira e da inflamação.Imunomodulador. Inibe a produção de linfócitos T, que orquestram a resposta alérgica.Terapia Biológica. Anticorpo que se liga e neutraliza a IL-31 (principal citocina da coceira).
Formato e FrequênciaComprimido oral. Uso diário (ou BID na fase inicial).Cápsula oral. Uso diário.Injetável subcutâneo. 1 dose a cada 4 a 8 semanas.
Rapidez de AçãoMuito Rápida (alívio do prurido em horas).Lenta (efeito máximo após 4 a 6 semanas de uso contínuo).Rápida (alívio do prurido em 24 a 72 horas).
Vantagens-chaveSegurança e Ação Rápida. Ideal para controle de crise e uso de longo prazo. Não é corticoide.Excelente para casos crônicos e graves. Comprovada eficácia na restauração da pele.Altíssima segurança. Não interfere em vacinas ou exames de sangue. Não é metabolizado pelo fígado/rim.
Limitações/CuidadosNão trata infecções secundárias. Pode não ser eficaz em 100% dos cães.Mais efeitos colaterais (vômito, diarreia no início). Custo elevado para cães grandes.Ação de alívio temporária (4-8 semanas). Exige injeção veterinária.
Uso IdealControle de crise e tratamento de manutenção de primeira linha.Casos refratários ou quando há necessidade de restauração imunológica profunda.Manutenção de longo prazo e controle de prurido em pacientes com doenças concomitantes.

O seu compromisso é com a qualidade de vida do seu paciente alérgico. Use a ciência e a disciplina do protocolo de exclusão para oferecer a ele o diagnóstico certo e o tratamento mais moderno.


Para mais detalhes sobre o manejo e diagnóstico da Dermatite Atópica Canina, o artigo científico “Dermatite Atópica Canina: Revisão de Literatura” (M. A. E. A. Belato et al.) é um excelente recurso que discute o diagnóstico por exclusão e os fatores predisponentes. É um material de leitura que reforça os pontos chave do nosso aprendizado.

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