Tártaro em Cães: A importância da saúde bucal
🦷 O Inimigo Silencioso: Tártaro em Cães e a Revolução da Saúde Bucal
E aí, futuros e atuais colegas da clínica odontológica! Vamos falar de um assunto que é, muitas vezes, negligenciado por tutores, mas que é o pilar da saúde sistêmica do nosso paciente: a saúde bucal. Eu costumo dizer que a boca do cão é um portal de entrada para doenças. Quando a gente vê aquele dente amarelado, com uma crosta marrom, a gente não está vendo só um problema estético; a gente está vendo uma infecção crônica instalada, esperando a oportunidade de migrar para os órgãos vitais.
O que o tutor chama de “tártaro” é, na verdade, a fase avançada da Doença Periodontal. Tudo começa com a placa bacteriana, uma película incolor que se forma nos dentes após as refeições. Se essa placa não é removida diariamente, ela se mineraliza rapidamente (em 24 a 72 horas) com o cálcio da saliva, transformando-se no cálculo dentário, o famoso tártaro. Esse tártaro não é inerte; ele é poroso e serve de refúgio para bilhões de bactérias.
É aqui que o problema se torna sistêmico. Essas bactérias causam a gengivite (inflamação da gengiva), que é o estágio inicial e reversível. Se não for tratada, a infecção avança e destrói as estruturas de suporte do dente (osso, ligamento e gengiva), culminando na periodontite – a perda óssea e o amolecimento/queda dos dentes. A parte que mais nos preocupa é a migração bacteriana: as bactérias e suas toxinas entram na corrente sanguínea e viajam para o coração, rins e fígado. A Doença Periodontal não é só um problema bucal; ela é um fator de risco para endocardite bacteriana e doença renal crônica. Seu papel é ser o guardião desse portal, educando o tutor sobre a rotina de prevenção e a importância da limpeza profissional.
🦠 A Evolução da Doença: Da Placa à Perda Óssea
Para você ser persuasivo com o tutor, precisa entender o quão rápida e destrutiva é a progressão da Doença Periodontal no cão. Em raças pequenas, esse ciclo pode se completar em poucos anos.
🦷 O Estágio Inicial: Gengivite e Placa Bacteriana
O ciclo destrutivo começa de forma silenciosa e, na maioria das vezes, indolor, com o acúmulo da placa bacteriana. A placa, que é uma matriz de proteínas salivares e bactérias, é o ponto de partida. Se essa placa persistir, a reação do organismo é a gengivite: uma inflamação que se manifesta como vermelhidão e inchaço da gengiva (principalmente na margem do dente) e sangramento fácil ao toque ou à escovação.
A grande notícia que você deve dar ao tutor é que o estágio de gengivite é totalmente reversível. Com uma limpeza dentária profissional (destartarização) e a implementação de uma rotina de escovação diária em casa, a gengiva pode voltar ao seu estado normal de cor rosa-claro, sem inchaço ou sangramento. Este é o ponto onde a prevenção é mais fácil e o prognóstico é excelente. Se o tutor percebe o mau hálito (halitose) ou o início da vermelhidão, é o momento perfeito para intervir.
No entanto, a negligência nesse estágio permite que a placa se mineralize, formando o cálculo dentário (tártaro), que atua como uma barreira física e um reservatório de bactérias, dificultando a remoção por escovação.
🦴 A Doença Periodontal: Destruição do Suporte Dentário
Se a placa e o tártaro não forem removidos, a infecção bacteriana avança para a linha da gengiva e começa a destruir o ligamento periodontal (o tecido que prende o dente ao osso) e o osso alveolar. Este é o estágio de Periodontite, que é irreversível. O dano ósseo não volta.
A periodontite é classificada em estágios (Graus 1 a 4) com base na perda óssea e na profundidade das bolsas periodontais. Você, como clínico, fará o diagnóstico por meio da sondagem periodontal e de radiografias intraorais (o raio-x da boca), que são essenciais para ver o que está acontecendo abaixo da gengiva. O tutor só percebe quando a doença está muito avançada, manifestando-se como mau hálito fétido (o odor pútrido de tecidos em decomposição), dor, dificuldade para comer ou o dente caindo sozinho.
Nesse estágio, o tratamento é agressivo e envolve a extração dentária. Não se trata de “salvar” o dente a qualquer custo, mas de eliminar o foco de infecção. Um dente com perda óssea avançada é uma fonte constante de dor e migração bacteriana, e a extração é um ato de saúde sistêmica e alívio da dor para o seu paciente.
💥 O Impacto Sistêmico: A Conexão Boca-Órgãos
A principal razão pela qual a Doença Periodontal é considerada uma doença sistêmica é a bacteremia (presença de bactérias no sangue) que ela causa. A boca é o berço de uma infecção que pode comprometer a vida do seu paciente a longo prazo.
💖 Coração e Rins: Os Alvos da Migração Bacteriana
As bactérias da boca, ao entrar na corrente sanguínea através das gengivas inflamadas e ulceradas, viajam e podem se alojar em órgãos vitais, causando infecções secundárias graves.
O coração é um alvo comum. As bactérias podem se fixar nas válvulas cardíacas, causando uma infecção chamada endocardite bacteriana. Essa condição danifica permanentemente as válvulas, levando à insuficiência cardíaca congestiva. Embora não seja o único fator, a doença periodontal é um fator de risco conhecido e deve ser gerenciado com rigor, especialmente em cães de raças pequenas já predispostas a doenças valvulares.
Os rins também são afetados. As bactérias bucais e as toxinas que elas liberam podem causar uma resposta inflamatória crônica que danifica os filtros renais (glomérulos), contribuindo para o desenvolvimento ou agravamento da doença renal crônica (DRC). A inflamação sistêmica constante gerada pela periodontite é um estresse metabólico contínuo que envelhece o organismo do seu paciente mais rapidamente. A saúde bucal é um ato de nefroproteção e cardioproteção.
🩸 Dor Crônica e Qualidade de Vida: O Sofrimento Silencioso
Além do risco sistêmico, a dor associada à periodontite avançada é um fator que você não pode ignorar. O cão, sendo um animal que esconde a dor por instinto, não vai chorar ou gritar. Ele manifestará a dor de formas sutis que o tutor deve ser ensinado a reconhecer.
Os sinais de dor incluem dificuldade para mastigar alimentos duros (preferindo alimentos moles), mastigar apenas de um lado da boca, salivação excessiva e irritabilidade ao ser tocado na face. Em casos graves, pode haver fratura de mandíbula (em dentes com perda óssea maciça) ou o desenvolvimento de fístulas oronasais (conexão entre a boca e a cavidade nasal), causando secreção nasal e espirros.
A remoção dos dentes doentes e a eliminação da dor não só eliminam o foco de infecção, mas promovem uma melhora imediata e significativa na qualidade de vida do cão. Muitos tutores se surpreendem com a vitalidade e alegria que o pet recupera após a cirurgia.
🛠️ O Protocolo de Prevenção: O Ataque de Três Pontas
A prevenção eficaz do tártaro e da doença periodontal é um plano de ataque de três frentes: escovação diária, dieta específica e limpeza profissional periódica.
🪥 Escovação Diária: A Regra de Ouro
A escovação dentária diária é a regra de ouro da prevenção. Como a placa leva de 24 a 72 horas para se mineralizar em tártaro, a remoção manual todos os dias é o único método capaz de interromper esse ciclo.
Você deve instruir o tutor a usar:
- Escova e Pasta Específicas: A pasta de dente humana contém flúor e detergentes que não devem ser engolidos e podem causar irritação gastrointestinal no cão. Use pasta enzimática específica para cães (que é segura para ingestão e tem sabor agradável) e uma escova de dentes macia que se ajuste à boca do animal.
- Técnica e Rotina: O foco da escovação deve ser a superfície externa dos dentes (a que toca a bochecha), onde o tártaro mais se acumula. O tutor não precisa esfregar a superfície interna. A escovação deve ser introduzida de forma gradual, com carinho e reforço positivo.
A escovação, se iniciada cedo (na fase de filhote), é facilmente aceita. O seu papel é convencer o tutor de que dedicar dois minutos por dia para a escovação é um investimento na longevidade e na saúde cardíaca e renal do seu pet.
🍗 Dieta e Mastigáveis: Suporte Mecânico e Químico
Embora a escovação seja o pilar, a dieta pode ser um excelente coadjuvante. Rações secas e específicas para saúde oral (com formatos e fibras que promovem a raspagem mecânica do dente) são melhores que alimentos moles.
Existem também petiscos e mastigáveis dentais (geralmente com formato e textura que promovem a limpeza mecânica) e aditivos para água que contêm substâncias antibacterianas. Eles são um suporte, mas nunca substituem a escovação. O tutor tem que entender que mastigar um osso ou um petisco não limpa 100% da superfície do dente, apenas ajuda na raspagem.
A Clorexidina (em forma de gel ou spray) é um poderoso agente antisséptico bucal. Ela pode ser usada topicamente nas gengivas após a escovação ou em dias alternados para reduzir a carga bacteriana e tratar a gengivite leve, sob sua prescrição.
💉 Destartarização Profissional: O Ponto de Virada
Quando o tártaro já está instalado, apenas a escovação não resolve. É necessária a limpeza dentária profissional (destartarização), que é um procedimento cirúrgico que deve ser realizado obrigatoriamente sob anestesia geral inalatória.
O procedimento inclui:
- Avaliação Pré-Anestésica: Exames de sangue para garantir que o cão está apto à anestesia (especialmente importante em cães idosos ou com problemas cardíacos/renais).
- Destartarização: Remoção do tártaro visível (supragengival) e, crucialmente, do tártaro abaixo da gengiva (subgengival) com ultrassom e curetas.
- Sondagem e Radiografia Intraoral: Para avaliar a perda óssea e a profundidade das bolsas periodontais.
- Extrações: Remoção de dentes condenados, seguida de sutura da gengiva.
- Polimento: O polimento dentário após a remoção do tártaro é essencial para suavizar a superfície do dente, dificultando a nova aderência da placa.
A frequência da limpeza profissional depende do paciente (a cada 6 meses a 2 anos, dependendo da velocidade de formação do tártaro). É o seu trabalho dar esse “reset” periódico na saúde bucal.
🐶 Raças, Idade e Risco: A Discrepância na Doença
A Doença Periodontal não afeta todos os cães da mesma maneira. Você precisa considerar a predisposição racial e a idade ao montar o plano de prevenção.
📏 O Risco da Raça e do Tamanho
Cães de raças pequenas e toy (Poodles, Yorkshire Terriers, Shih Tzus, Chihuahuas) são desproporcionalmente mais afetados e em uma idade mais precoce. Isso se deve a dois fatores principais:
- Apinhamento Dentário: Eles têm a mesma quantidade de dentes que um cão grande, mas em uma mandíbula muito menor. Isso causa dentes muito próximos e desalinhados (apinhamento), criando locais perfeitos para o acúmulo de placa que a escovação não alcança.
- Estrutura Óssea: Muitos têm uma estrutura óssea da mandíbula mais delicada e menos suporte para o dente.
Em contraste, cães de raças grandes e gigantes tendem a ter uma incidência mais tardia, embora a doença possa ser igualmente grave. Se você atende um Yorkshire Terrier, a prevenção bucal deve ser o foco principal da sua consulta.
⏱️ O Fator Idade e Anestesia Segura
Com o avanço da idade, a doença periodontal tende a piorar, e as doenças sistêmicas (cardíacas e renais) tendem a aparecer. Isso torna a necessidade da limpeza dentária mais urgente e, ao mesmo tempo, a anestesia mais arriscada.
Você precisa desmistificar o medo da anestesia no cão idoso. Com a medicina veterinária moderna, a anestesia inalatória (com isoflurano ou sevoflurano) é extremamente segura. Com a avaliação pré-anestésica rigorosa (exames de sangue, ecocardiograma), o risco é minimizado. O risco de não fazer a limpeza (permitindo que a infecção bucal crônica continue danificando o coração e os rins) é infinitamente maior do que o risco da anestesia.
Sua missão é convencer o tutor de que a limpeza dentária não é um luxo, mas uma extensão do tratamento cardíaco ou renal, eliminando o foco da infecção que está sobrecarregando os órgãos vitais.
📊 Quadro Comparativo de Ferramentas de Prevenção Bucal
Para guiar o tutor na escolha dos produtos coadjuvantes que complementam a escovação, o comparativo é uma ferramenta útil e prática.
| Característica | Creme Dental Enzimático (Ex: C.E.T. Virbac) | Aditivo para Água (Ex: Aquadent, Ourofino) | Petisco/Mastigável Dental (Ex: Dentalife, Pedigree) |
| Mecanismo Principal | Químico/Mecânico. Enzimas ajudam a quebrar a placa bacteriana, e a escova remove mecanicamente. | Químico. Contém antissépticos suaves (ex: Clorexidina ou Zinco) que reduzem a carga bacteriana na saliva. | Mecânico. Textura e formato desenhados para raspar a superfície do dente durante a mastigação. |
| Frequência de Uso | Diário (Obrigatório). | Diário (Na água de beber). | Diário (Como petisco). |
| Eficácia na Prevenção | Altíssima, mas depende da técnica e regularidade. Principal agente preventivo. | Boa, mas limitada. Atua no controle da halitose e na redução de placa de forma suave. | Variável. Ajuda a reduzir a placa nos dentes posteriores, mas não substitui a escovação. |
| Vantagens-chave | Único método de remoção real de placa na superfície do dente. Sabor agradável. | Fácil de usar e ótimo para cães que não toleram escovação. Ação 24h na boca. | Reforço positivo. Promove mastigação, que é um exercício natural. |
| Limitações/Cuidados | Exige disciplina do tutor. Muitos tutores desistem após a primeira semana. | Não remove tártaro já instalado. Eficácia limitada na superfície do dente. | Alto teor calórico. Não alcança a placa subgengival ou em dentes apinhados. |
| Uso Ideal | Fundamento da prevenção em qualquer cão que aceite a escovação. | Cães que não aceitam escovação. Suporte complementar à escovação. | Suporte complementar diário para a saúde geral da boca. |
Seu trabalho é mostrar ao tutor que a saúde bucal é um investimento em longevidade. Comece a escovação hoje, e seu paciente agradecerá com um coração mais saudável amanhã.
Para mais detalhes sobre as técnicas de escovação dentária e a importância da anestesia segura no tratamento periodontal, assista a este vídeo: Como Escovar os Dentes do Cachorro de Forma Fácil. Este material do YouTube oferece dicas práticas para iniciar a rotina de escovação, superando a resistência inicial do seu paciente.




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