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O perigo do “vômito amarelo” (bile) nos cachorros

O perigo do "vômito amarelo" (bile) nos cachorros

O perigo do “vômito amarelo” (bile) nos cachorros

💛 O Perigo do “Vômito Amarelo” (Bile): Desmistificando a Síndrome do Vômito Bilioso (SVB)

Aluno, vamos falar sobre aquele vômito amarelo que assusta. Ele aparece de manhã, suja a casa e faz você ligar para a clínica com a voz trêmula: “Doutor, meu cão vomitou um líquido amarelo forte, deve ser o fígado!”. Meu primeiro conselho, como gastroenterologista, é respirar fundo. Aquele líquido amarelo é, de fato, bile, mas na grande maioria das vezes, a bile no estômago não é um sinal de que o fígado está falhando; é um sinal de que o estômago está irritado por estar vazio demais.

A bile no vômito é uma ocorrência tão comum que ela ganhou um nome: Síndrome do Vômito Bilioso (SVB). Meu trabalho aqui é te dar a certeza de que a SVB é, na maioria dos cães, um problema simples de resolver, focado na rotina alimentar. No entanto, precisamos traçar a linha onde o vômito bilioso deixa de ser uma simples irritação e se torna um alarme para obstrução ou pancreatite.


I. Introdução: A Química Amarela e o Medo Desnecessário

Para entender o vômito bilioso, precisamos entender o que é a bile e qual é o caminho que ela faz.

O que é a Bile: O fluido digestivo do fígado e o pigmento Bilirrubina.

A bile é um fluido digestivo essencial produzido pelo fígado e armazenado na vesícula biliar. Sua função principal é ajudar a emulsificar e digerir as gorduras no intestino delgado.

A bile contém sais biliares, colesterol e, crucialmente, um pigmento de degradação chamado Bilirrubina. É a bilirrubina que dá à bile sua cor característica, que varia do amarelo-esverdeado ao amarelo-alaranjado. A cor amarela no vômito, portanto, significa apenas que a bile, que deveria estar no intestino, de alguma forma, regressou ao estômago.

O Vômito Bilioso: Sinal de Estômago Vazio e o Refluxo Duodenogástrico.

O vômito bilioso (ou “amarelo”) ocorre quando o estômago está vazio de alimentos por um longo período. O ácido gástrico continua a ser produzido e, sem alimento para neutralizá-lo, ele irrita a mucosa gástrica. Essa irritação induz a náusea e o vômito.

Como o estômago está vazio, o cão expele a espuma gástrica e, como há um relaxamento dos esfíncteres durante o vômito, ocorre o Refluxo Duodenogástrico: a bile, que está no duodeno (primeira porção do intestino delgado), volta para o estômago e é expelida. A bile é o conteúdo mais fácil de ser expelido do estômago vazio.

A diferença entre o vômito de bile simples e a doença hepática.

Muitos tutores associam o vômito amarelo a uma falha no fígado. Quero que você entenda que isso é raramente verdade. O vômito bilioso é um problema de transporte e irritação, não de produção. O fígado está produzindo bile normalmente.

Apenas em casos muito raros, quando há uma doença hepática grave (insuficiência hepática) que cursa com Icterícia (amarelamento das mucosas e pele), o vômito pode ser secundário à doença. Mas a bile no vômito não é, por si só, um sinal primário de falha hepática.


II. O Principal Culpado: Síndrome do Vômito Bilioso (SVB)

A causa mais frequente do vômito amarelo matinal tem nome: Síndrome do Vômito Bilioso (SVB). Esta é uma condição crônica, mas geralmente benigna.

O Efeito do Jejum Noturno: O acúmulo de ácido gástrico na ausência de alimento.

O cão adulto, muitas vezes, faz a última refeição por volta das 18h ou 19h e só come novamente às 7h ou 8h da manhã. São 12 a 14 horas de jejum. Durante esse período, o estômago está vazio de comida, mas não de ácido gástrico.

O ácido se acumula, o pH gástrico cai e a mucosa é irritada. Essa irritação gástrica prolongada é o que dispara o reflexo do vômito no meio da madrugada ou logo ao amanhecer. O estômago, irritado, ejeta seu conteúdo: bile, ácido e espuma.

Refluxo Duodenogástrico: A falha do esfíncter pilórico e a entrada da bile no estômago.

A SVB envolve um componente mecânico-hormonal. O estômago é separado do duodeno (intestino) pelo esfíncter pilórico. Em cães com SVB, durante o jejum, há uma falha ou um relaxamento desse esfíncter, que permite que o conteúdo do duodeno (que é rico em bile) volte para o estômago. Isso é o Refluxo Duodenogástrico.

O próprio ácido gástrico e a irritação prolongada podem contribuir para o relaxamento do piloro. A bile é alcalina, e sua presença no ambiente ácido do estômago causa irritação adicional, reforçando o ciclo de náuseas e vômitos.

O Padrão Clássico da SVB: Vômito de manhã cedo, antes da primeira refeição, com alívio imediato após comer.

O padrão do vômito bilioso por SVB é previsível e, por isso, fácil de diagnosticar. Ele ocorre:

  • De manhã cedo (entre 4h e 8h).
  • Antes da primeira refeição.
  • Com alívio imediato após o cão comer algo.

Se o seu cão vomita amarelo, mas logo depois come a ração e fica bem o dia todo, é quase certo que ele tem SVB. A comida resolve o problema porque neutraliza o ácido, preenche o estômago e absorve a bile. A solução, nesse caso, é puramente rotineira.


III. Protocolo de Ação: Prevenção e Manejo da SVB

A cura da SVB está na sua disciplina e no relógio. A chave é não deixar o estômago ficar vazio por tempo suficiente para que o ácido e a bile causem o refluxo.

Estratégia do Lanche Noturno: Fracionando a dieta para manter o estômago ocupado.

A solução mais simples e eficaz para a SVB é fracionar a dieta. Em vez de duas grandes refeições, passe para três ou quatro porções menores ao dia. Mais importante: adicione um lanche noturno ou refeição tardia.

Dê uma pequena porção da ração do seu cão (ou um petisco altamente digestível) logo antes de você se deitar (por volta das 22h ou 23h). Esse alimento noturno absorve o ácido gástrico durante as horas mais críticas da madrugada, interrompendo o ciclo de acúmulo e irritação.

Protetores Gástricos (Se Necessário): O uso de antiácidos e inibidores para neutralizar o ácido.

Se o simples fracionamento da dieta não for suficiente, seu veterinário pode prescrever medicamentos para controlar a secreção de ácido. Os Inibidores da Bomba de Prótons (como o Omeprazol) ou os bloqueadores de H2 (como a Ranitidina, se disponível) podem ser usados por um curto período.

Eles agem diminuindo a produção de ácido gástrico. Usamos esses medicamentos como um tratamento de suporte para dar tempo ao estômago de se curar da irritação crônica causada pelo refluxo, mas eles não devem ser a única solução. Eles são uma ferramenta, não a cura.

Dieta de Alta Digestibilidade: Facilitando o esvaziamento gástrico e a redução da irritação.

O tipo de alimento também influencia. Uma dieta que é altamente digestível e baixa em gordura é benéfica para cães com SVB. Alimentos de digestão mais fácil permanecem menos tempo no estômago, o que diminui a chance de refluxo.

Se a irritação persistir, seu veterinário pode recomendar uma dieta gastrointestinal terapêutica ou uma dieta de proteínas hidrolisadas por um tempo. Essas dietas são formuladas para serem gentis com o estômago, promovendo a cura e o rápido esvaziamento gástrico.


IV. Quando o Amarelo é um Alarme Grave

Embora a SVB seja comum, o vômito bilioso pode ser um sintoma de doenças mais sérias se o padrão for alterado.

Vômito Bilioso Persistente: O vômito que não para com a alimentação (Suspeita de Obstrução).

Se o seu cão está vomitando bile amarela várias vezes ao longo do dia, e o vômito não cessa após ele comer, você tem um problema grave. Isso não é mais SVB.

O vômito bilioso persistente pode indicar que o fluxo normal de comida e bile está bloqueado em algum ponto. A Obstrução Intestinal é a principal suspeita. Se o conteúdo não consegue passar do estômago ou intestino, ele é forçado a voltar. O vômito em jato ou persistente, mesmo com bile, é uma emergência que exige radiografia e ultrassom imediatos.

Vômito Bilioso com Prostração e Dor: O alerta para a Pancreatite Aguda.

A presença de bile no vômito, acompanhada de prostração (fraqueza extrema), dor abdominal (cão encurvado em “posição de oração”) e falta de apetite total, é um sinal clássico de Pancreatite Aguda (inflamação grave do pâncreas).

A pancreatite causa náuseas e vômitos intensos. A dor é tão severa que o cão se recusa a se mover ou comer. A bile no vômito é secundária ao quadro inflamatório e de dor, mas a emergência é a pancreatite em si, que exige internação e fluidoterapia intensiva.

Bile na Obstrução Intestinal: O refluxo como sinal de que o fluxo intestinal parou.

Quando há uma obstrução grave no intestino (por um corpo estranho ou massa tumoral), o conteúdo intestinal, incluindo a bile e o suco pancreático, é impedido de avançar.

Essa estagnação e o esforço do peristaltismo para mover o bloqueio causam um vômito persistente e bilioso. A bile está lá porque o intestino não tem para onde mandá-la, exceto de volta para o estômago. Se o vômito amarelo for acompanhado de incapacidade de defecar ou de dor abdominal, a suspeita de obstrução é altíssima e o cão precisa de cirurgia.


V. O Fígado e a Cor: Diferenciando Icterícia e Bile

Vamos esclarecer a confusão mais comum: a cor amarela no vômito não é a mesma coisa que a pele amarela.

A Diferença da Coloração: Vômito bilioso (amarelo-alaranjado) vs. Icterícia (amarelamento de mucosas).

O vômito bilioso é o produto da bile que vazou. A Icterícia (o amarelamento) é uma doença sistêmica que ocorre quando a bilirrubina (o pigmento amarelo da bile) se acumula no sangue e deposita-se na pele e nas mucosas (gengivas, parte branca dos olhos).

Se o seu cão está vomitando bile e você observa as gengivas e os olhos amarelados, isso é um sinal muito mais grave, que indica que a bilirrubina não está sendo eliminada corretamente. Isso, sim, sugere problemas no fígado ou anemia hemolítica. A icterícia é um sintoma, o vômito bilioso é um reflexo gástrico.

Diagnóstico Laboratorial da Função Hepática: Enzimas (ALT/AST) e Bilirrubina Sérica.

Para avaliar se o fígado é realmente o culpado, o veterinário precisa de exames de sangue. Os exames de bioquímica avaliam as enzimas hepáticas (como ALT e AST). Níveis elevados indicam lesão celular no fígado.

Além disso, dosamos a Bilirrubina Sérica. Se a bilirrubina no sangue estiver alta, confirmamos a icterícia e focamos o diagnóstico na causa hepática ou biliar. Apenas o exame de sangue pode te dizer se o fígado é o problema por trás da cor amarela.

Cálculos Biliares e a Colestase: O entupimento do ducto biliar e o impacto na digestão.

Em casos raros, o vômito bilioso pode estar associado a um problema na eliminação da bile. Cálculos Biliares ou uma inflamação (Colecistite) podem obstruir o ducto biliar (Colestase), impedindo o fluxo normal da bile para o intestino.

Esse entupimento pode causar dor, vômito e, se a bile não consegue entrar no intestino para digerir a gordura, as fezes do cão ficam esbranquiçadas ou acinzentadas. O diagnóstico é feito por ultrassom e exige intervenção para desobstruir o canal.


VI. O Vômito Bilioso Crônico e a DII

Quando o vômito amarelo se torna uma rotina persistente que a alimentação não resolve, a investigação se volta para a inflamação crônica do trato gastrointestinal.

Gastrite Linfoplasmocitária Crônica: A inflamação crônica do estômago e o vômito bilioso recorrente.

O vômito bilioso pode ser um sintoma de Gastrite Crônica, muitas vezes causada por uma Doença Inflamatória Intestinal (DII). Nessa condição, o revestimento do estômago (e/ou intestino) é infiltrado por células inflamatórias (linfócitos e plasmócitos).

Essa inflamação crônica torna a mucosa gástrica hipersensível. A bile que entra no estômago, mesmo em pouca quantidade, irrita essa mucosa inflamada, causando o vômito recorrente. A SVB, nesses casos, é um sintoma da gastrite crônica, e não apenas de um estômago vazio.

Endoscopia e Biópsia: A necessidade de olhar “por dentro” para fechar o diagnóstico de DII.

Quando a SVB é refratária ao tratamento alimentar, precisamos ir mais fundo. A Endoscopia é a ferramenta ideal. Inserimos uma câmera flexível pela boca para inspecionar o esôfago e o estômago.

A endoscopia nos permite visualizar o grau de inflamação e erosão na mucosa e realizar uma Biópsia (coleta de pequenos pedaços de tecido). A biópsia é o padrão-ouro para confirmar a DII e guiar o tratamento, que será focado em acalmar essa inflamação crônica.

Dieta de Eliminação: O manejo nutricional para acalmar a inflamação gastrointestinal crônica.

A causa da inflamação crônica (DII) é frequentemente uma reação adversa a algum componente da dieta. O tratamento se baseia em uma Dieta de Eliminação rigorosa.

O cão passa a comer uma dieta com uma única fonte de proteína (como carne de cavalo ou pato) que ele nunca comeu antes, ou uma dieta hidrolisada (onde as proteínas são quebradas em pedaços não reconhecíveis pelo sistema imune). Se o vômito bilioso crônico e a gastrite pararem, confirmamos a alergia alimentar e o cão deve permanecer nessa dieta de manutenção.


VII. Conclusão: Tranquilidade na Cor, Disciplina na Rotina

O vômito amarelo é uma lição de anatomia e rotina. Ele exige de você uma ação simples, mas disciplinada.

A segurança da SVB e o risco da persistência.

O “perigo” do vômito bilioso é o risco de desidratação se ele se torna persistente, não a cor em si. Na maioria das vezes, a cor amarela é um sinal de que o seu cão precisa de um lanche tarde da noite e nada mais.

O chamado para a disciplina no manejo do jejum.

Sua disciplina em fracionar a dieta e incluir o lanche noturno é o melhor remédio e a melhor prevenção contra a SVB. Seja um tutor atento à rotina do seu cão e evite o jejum prolongado.


Quadro Comparativo: Tratamento do Vômito Bilioso (SVB)

Aqui está um quadro que compara as três principais abordagens para o manejo da Síndrome do Vômito Bilioso, priorizando o manejo de rotina em vez de medicamentos.

IntervençãoTipo de TratamentoObjetivo PrimárioProduto/Abordagem a Evitar
Lanche NoturnoManejo de Rotina (Comportamental)Neutralizar o Ácido Gástrico e prevenir o Refluxo Bilioso durante o sono.Jejum Prolongado: É a principal causa da irritação matinal.
Protetores GástricosFarmacológico (Prescrito)Diminuir a Produção de Ácido (Omeprazol) e proteger a mucosa irritada.Antiácidos de Venda Livre (Ex: bicarbonato): Efeito de curta duração e pode causar desequilíbrio.
Dieta de Alta DigestibilidadeNutricionalPromover o Esvaziamento Gástrico Rápido e reduzir a irritação.Alimentos Ricos em Gordura/Comida Humana: Atrasam o esvaziamento e agravam o Refluxo.

Gostaria que eu fizesse uma pesquisa sobre o manejo nutricional para cães com Doença Inflamatória Intestinal (DII), incluindo o uso de dietas hidrolisadas e de eliminação, já que a DII pode causar vômito bilioso crônico?

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