Adotei um cão medroso/traumatizado: E agora?
Que tópico desafiador e, francamente, um ato de amor e paciência clínica, colega! Adotar um cão medroso ou traumatizado é assumir a responsabilidade de reescrever um histórico de vida. O medo não é um defeito; é uma resposta fisiológica do cão que aprendeu que o mundo é imprevisível e perigoso. Seu trabalho, como futuro veterinário, é guiar o tutor através do protocolo de descompressão, que exige segurança, previsibilidade e, acima de tudo, tempo.
Nós precisamos intervir para acalmar o Eixo HPA (o sistema de stress) do paciente. A paciência é a nossa primeira prescrição.
1. 🛡️ O Protocolo de Segurança: O Início da Reabilitação (Câmara de Descompressão)
O cão traumatizado precisa de um refúgio e de regras rígidas para se sentir seguro.
1.1. O Espaço Seguro: Criação de um Refúgio (Caixa ou Cômodo Calmo)
O primeiro passo é criar uma “câmara de descompressão”. Este é um local pequeno, calmo e previsível (caixa de transporte aberta, kennel ou um quarto de hóspedes). O cão deve ter acesso a recursos essenciais (água, comida, cama) e refúgios (caixas de papelão, cobertores).
O tutor deve permitir que o cão escolha permanecer neste espaço. O espaço seguro é o território inegociável do cão, onde ele não será abordado por estranhos ou por outros pets. Isso devolve ao cão o senso de controle.
1.2. A Regra da Não-Interação: O Veto a Forçar o Contato Físico
O tutor deve ser instruído a praticar a Regra da Não-Interação na primeira semana. Não forçar, não abraçar, não olhar fixamente, não tentar tocar. O toque deve ser iniciado pelo cão.
O contato visual direto é uma ameaça na linguagem canina. O tutor deve se sentar passivamente (lendo ou mexendo no celular), deixando o cão se aproximar por curiosidade ou cheirar em seu próprio tempo.
1.3. Rotina Rígida: Previsibilidade como Antídoto Neurobiológico ao Medo
O trauma é imprevisível. O antídoto é a rotina rígida. Horários fixos de alimentação, passeios e potty breaks (necessidades) criam previsibilidade ambiental.
Essa previsibilidade reduz a ansiedade de antecipação do cão. O cérebro do cão aprende: Se eu sei o que vai acontecer, não preciso ter medo. A rotina é a nossa prescrição para o controle do cortisol.
2. 🧠 A Mente do Trauma: Sinais, Fisiologia e Gatilhos
O medo tem uma linguagem e uma química.
2.1. Leitura da Linguagem Corporal: Sinais de Apaziguamento e Medo (Bocejo, Lamber Lábios)
O tutor deve ser um tradutor da linguagem corporal do medo:
- Sinais de Apaziguamento (Calming Signals): Bocejo, lamber de lábios, virar o rosto, cheirar o chão.
- Sinais de Stress: Cauda baixa/entre as pernas, tremores, orelhas para trás, evitação visual.
2.2. O Eixo HPA: O Medo Crônico e a Produção Excessiva de Cortisol
O cão traumatizado vive com o Eixo HPA (Hipotalâmico-Pituitário-Adrenal) hiperativo, produzindo cortisol e adrenalina constantemente. O medo crônico afeta o sistema imunológico e o comportamento.
2.3. O Descarte da Dor: Exclusão de Lesões e Dor Crônica como Causa da Reatividade
O medo ou a agressão podem ser causados por dor. O cão que tem Osteoartrite (OA) ou dor crônica pode reagir com medo ou agressão defensiva ao toque.
3. 🎯 Contracondicionamento: Transformando o Medo em Recompensa
O reforço positivo reescreve a memória aversiva.
3.1. Dessensibilização Passiva: Uso de Petiscos de Alto Valor (Vínculo de Confiança)
O tutor deve usar petiscos de alto valor (carne, queijo) como reforço de distância. O petisco deve ser jogado perto do cão (mas não muito perto para não invadir o espaço).
3.2. Dessensibilização Ativa: Exposição Gradual a Ruídos e Estímulos (O Foco Lento)
O cão deve ser exposto a seus gatilhos (ruídos de rua, campainha) em um nível muito baixo (quase inaudível), recompensando a calma.
3.3. O Treinamento de Comando: Clicker e Reforço para a Construção da Confiança
O treinamento com clicker (truques simples) é excelente. Ele foca o cão em uma tarefa previsível, ativando a dopamina e a confiança no tutor.
4. 💊 Apoio Farmacológico e Nutracêutico
O suporte químico é essencial para o medo severo.
4.1. Feromônios e Nutracêuticos: Suporte ao Eixo do Estresse
O Feromônio DAP (Adaptil) no ambiente ou a $\alpha$-Casozepina (Zylkene) / L-Triptofano na dieta ajudam a reduzir a ansiedade de base, tornando o cão mais receptivo ao treinamento.
4.2. Medicação Ansiolítica: Tratamento da Fobia Severa
Em casos de fobia severa (pânico incontrolável), medicamentos como Gabapentina ou Trazodona podem ser prescritos para quebrar o ciclo do medo e permitir a dessensibilização.
5. 🔗 O Vínculo de Qualidade: Interação e Treinamento
O afeto deve ser sutil e respeitoso.
5.1. O Toque Terapêutico: Carinho Suave e a Iniciação Pelo Cão
O tutor deve evitar abraços, que são percebidos como confinamento. O toque deve ser suave e lateral (ombro, pescoço).
5.2. O Manejo da Fuga e da Agregação de Medo
O tutor deve usar uma guia longa e segura (em ambiente controlado) para evitar a fuga por pânico.
Quadro Comparativo de Ferramentas de Calma
| Ferramenta | Mecanismo de Ação | Indicação Principal | Duração do Uso |
| Refúgio (Caixa/Toca) | Segurança e Controlo do Ambiente | Estágio Inicial (Descompressão) | Permanente (Deve ser Opção do Cão). |
| Feromônio (DAP) | Suporte Olfativo (Mensagem de Calma) | Ansiedade de Base (Manejo Ambiental) | $30$ a $60$ dias. |
| L-Triptofano/Zylkene | Suporte Neuroquímico (Serotonina/GABA) | Ansiedade Crônica (Hiperatividade do Eixo HPA) | $30$ a $60$ dias (Pode ser Contínuo). |
Lembre-se, colega, o medo é um grito por segurança. Seu amor se traduz em rotina, previsibilidade e respeito ao espaço do paciente.




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